sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

a semana que durou uma vida

estou numa semana tão ruim
que alguns segundos bastam para me tirar da realidade.
e nesses momentos de devaneios inúteis, pensei seriamente em colocar uma peruca loira e cacheada num saco de lixo, rodinhas em sua base, um enchimento tosco,
e empurrá-lo rumo aos meus compromissos.
imagino os murmúrios curiosos, os instantes de perplexidade, em busca da compreensão
até que alguém, mais atento, diria um pouco alto: “ah, a marina mudou de visual”
e a maioria pararia de olhar, porque seria falta de educação.
alguns, inclusive, dariam tapinhas carinhosos no saco de lixo, parabenizando a mudança refrescante de aparência:
três vivas ao fim de semestre.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

encontro comigo


Acontece de vez em quando, e aconteceu dia desses.

É necessário um determinado estado de espírito, talvez trazido pela emoção de estar me guiando pelas ruas de uma cidade que não me pertence. A péssima memória geográfica fazia com que o celular se fingisse de mapa, e uma diversão pura como eu não tinha há tempos enchia meu peito. Míope e sem óculos, observava as árvores de folhas indistinguíveis, amassadas pela visão defeituosa, mas não menos coloridas: a paisagem era nova e me dissolvia em sua escassez de pessoas e trânsito. Procurava as placas de rua excitada com a ideia da coragem necessária para a proposta de perda e retomada, depois do erro na rota devidamente reconhecido. 

Sim, foi exatamente por isso. Dobrei uma praça sem horário para aquela caminhada, e ali, vinte metros adiante, estava eu mesma.

Fazia tempo que não me via assim, numa esquina esquecida. Queira me entender, sou do tipo que dorme consigo mesma e não liga no dia seguinte. Mas, acredite, dói em mim também. Dói mais em mim, porque sou eu quem precisa tomar a iniciativa quando as coisas estão perto de dar certo demais. Estou parada logo ali, passos mecânicos me aproximam de mim mesma, e ensaio um pedido de desculpas.

São desculpas sinceras. Tento não me maltratar, mas é mais forte do que eu. É amor, sim, um amor louco que às vezes odeia o olhar de esperança em meu rosto. A ingenuidade e a expectativa, não sei lidar com elas nesse corpo que às vezes observo, enquanto durmo. Tenho uma beleza enorme e quero me abraçar, mas sou eu, sozinha, quem sabe da podridão que ali repousa.

Às vezes me sinto tão bem e forte que o medo me consome. Eu me aviso, dou pistas sobre tudo que pode falhar, mas a intensidade me separa de mim. Esse sempre foi o problema: sou radical demais com sentimentos. Prefiro a segurança, e quando tomo riscos, a raiva se instala em meu estômago e lá me aguarda. Sou paciente. Espero a queda, e quando ela acontece, sinto necessidade de tomar as rédeas, pular de uma rua atravessada e enfiar o dedo na minha cara dizendo “eu avisei”. Choro até me acabar e peço desculpas, mas é difícil aceitá-las. A violência das emoções é transferida para a ponta da minha garganta, e grito comigo mesma transfigurada pela fúria. Frágil, me recolho e reconheço minha insignificância; a pena me faz oscilar, despertando o desprezo.

Agora são dez metros. Daquela esquina me encaro sem medo, mas baixo os olhos aqui, envergonhada. Você sabe o que é desprezar a si mesmo? Tenho nojo do meu cérebro viciado, e é o nojo que acende o alerta do vício. Estou em abstinência faz alguns meses, mas isso não diminui a sensação escancarada de insaciedade. Eu quero, eu preciso, e sou eu quem segura minhas mãos com firmeza quando tremo demais. Como posso me abandonar assim, a única pessoa que sempre está comigo, e que conhece a dor? Os espelhos estão cobertos para que o ciclo pare de alguma forma. A lenda do vampiro é muito maior do que dizem, uma mitologia pouco explorada sobre desejos pecaminosos e sussurros noturnos. Como não acreditar que a imortalidade e a violência são aspirações eternas? Quem puxa as cortinas e deixa o sol entrar, quem arrisca queimar a pele com a luz mais mortífera e bela que jamais será superada? Poucos. Justifica minha vida solitária, permita-me a honestidade.

Você não sabe o que é desespero. Eu sei, e a poucos passos de distância está a única outra pessoa da galáxia que sabe. Ensaio algum argumento e no instante seguinte lembro que meus olhos me desmascaram. Preciso dizer alguma mentira para me acalmar, porque a verdade é massacrante. Estou respirando fundo, talvez eu colapse antes de me reencontrar, e então sou eu quem dá passos, vindo em minha direção.

O silêncio cai tão pesado quanto um navio cargueiro, com a lentidão de uma pluma.

- Paradoxos e inconsistências, estou cheia deles, não é?

Minha risada oscila, olho para mim e o sorriso é firme e muito mais sincero. Não faz sentido para mais ninguém, e por isso estou satisfeita de dividir esse momento comigo.

Começo a dizer algo e me calo, dedo nos lábios.

- Vai ficar tudo bem.

Acredito. Que caiam os céus, porque esse relacionamento vai dar errado e continuo insistindo. Sou um componente instável de uma fórmula duvidosa: sempre há fumaça e explosões. Essa é a graça, chego quando menos espero e me assalto, brigo comigo mesma num ímpeto homicida, me torturo consecutivamente procurando meus limites físicos e mentais. Se nunca saio ilesa, o que seria diferente agora? 

Não sei, mas me permito acreditar, porque naquela tarde fez sentido. Talvez haja um pouco de raiva mais tarde, mas agora sou eu quem fica enquanto me observo prosseguir o caminho. Estava com saudades, e por alguns instantes experimento a plenitude. Depois aguardarei, por segundos ou séculos, em alguma esquina esquecida.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Aquário



Quando as fotos apareceram no grupo de What’s App da turma de faculdade, um sentimento agridoce apertou meu peito por debaixo de toda a agitação fútil que borbulhava daquelas pessoas sedentas por sangue, abutres cercando a carne podre da última fofoca.

Alec era um quebra-cabeça a ser remontado.

-

Tudo começou por culpa do meu terapeuta. Na verdade ele poderia se defender dizendo que tudo começou com meu trauma de lugares fechados ou muito cheios, lá na minha infância. Nunca acreditei em destino, então na verdade sou até inclinada a dizer que nada aconteceu, foi apenas um amontoado de fatos aleatórios que me levaram até aquele elevador.

Enfim: era uma sexta-feira logo após um feriado de quinta, então a capital parecia esvaziada de estudantes e trabalhadores que eram de outros cantos e iam visitar suas famílias. A faculdade carregava uma calma que não lhe pertencia, e eu esperava pelas filas menores para entregar papéis da minha reprova em Cálculo I. Já imaginava a cara desagradável da moça que ficava no balcão do sexto andar; talvez ela até exibisse um sorrisinho satisfeito ao ver que mais alguém estava infeliz no que deveria ser uma emenda de feriado. Eu numa cidade fantasma e ela num emprego que pagava mal, duas almas solitárias sendo atraídas pela fatal atração do fracasso.

Eram doze lances de escada. A conta capenga logo foi rechaçada por meu cérebro sarcástico, parabenizando-me por tão genial conclusão. Nem imagino por que você não passou nessa matéria!, cantarolava uma voz irritante de dentro da minha orelha. Ao lado dos degraus mal desenhados – prédios antigos muitíssimas vezes sofrem dessa maldição – estava o elevador.

Passei anos da minha vida sem subir num desses; meus pesadelos estavam lotados de caixas sem saída e mares de gente nos quais eu me perdia. Como meus pais sempre foram religiosos, passei por um sem-número de rodas de oração, exorcismos e conversas com pastores, mas nada resolveu. Assim que ganhei meu primeiro salário procurei tratamento psicológico, me estrangulei financeiramente para conseguir pagá-lo e valia cada centavo. Shoppings não pareciam o inferno na Terra, shows eram possíveis se eu ficasse perto da porta – ou num andar com mesas espaçadas – e até elevadores poderiam ser usados, sempre à força mas com uma pequena sensação de prazer (e alívio) assim que a porta se abria.

Com a faculdade vazia, o elevador me encarava gravemente, esperando uma decisão. Eu não estava tão cansada, e cada degrau me fornecia a liberdade que aquela armadilha tecnológica nunca seria capaz de me conceder. Contudo, as folhas em minhas mãos pesavam os quilos da derrota, e talvez ver-me fora daquela caixa metálica fosse o empurrãozinho necessário para que o dia não parecesse tão horrível.

Pisei lá dentro segurando um pouco a respiração, a luz branca oprimindo minha alma covarde. 

Eu estava quase mudando de ideia quando um braço surgiu entre as portas que me trancavam à parte da humanidade e Alec apareceu com um bom dia. Acenei afirmativamente engolindo minhas palavras trêmulas, sabendo que sair não era mais uma opção.

O monstro pareceu demorar mais que o normal em sua decolagem, mas o tempo sempre ficava distorcido em seu interior. Por isso, quando a lâmpada oscilou arrastando o sangue da minha cabeça, achei que era exagero meu, e ela logo estaria de volta. Mas aí senti a gravidade se estabilizar, sem que as portas se abrissem. Não havia número no visor, e o limbo me dava as boas-vindas.

-

Para ser justa, o limbo nos dava as boas-vindas. Meus neurônios corriam de um lado para o outro segurando plaquinhas, quebrando máquinas com pedras e gritando coisas sem sentido, paredes parecendo se inclinar sobre minha cabeça.

Quando Alec segurou meu braço, a taquicardia interrompeu as diversas cenas possíveis nas quais meu corpo se espatifava junto ao chão do elevador, caindo no fim de um poço vazio e infinito. Eu poderia ter ficado grata por isso, mas estava ocupada com o susto, tentando processá-lo enquanto meu cérebro continuava em pane.

- Amanda, você está transparente de tão branca.

Havia uma contradição naquela frase, e isso me tirou um pouco de dentro de mim. Comecei a relembrar paradoxos, um ser onipotente consegue criar uma pedra tão pesada que ele mesmo não possa carregar?, me distraindo do terror, mas logo minhas pernas me traíram e cambaleei, agora imaginando se algum deus entediado rasgaria o teto sobre minha cabeça com uma pedra, deixando-me à beira de um buraco mortal.

- Moça, você precisa respirar.

Parecia uma boa ideia. Olhei pra ele com medo de que meus olhos saltassem das órbitas e acertassem seu rosto.

- Vamos lá. Respira... Solta... Respira... Solta.

Comecei a acompanhar, mas era muito difícil. Eu poderia ter dito algo agradável, mas preferi soltar a clássica voz aguda dizendo “nós vamos morrer”.

Alec sorria tentando me tranquilizar, e explicando que era impossível que morrêssemos. Nada é impossível, rebati enquanto apanhava o fôlego, sempre mecanicamente, sempre pensando que da próxima vez não haveria ar e teríamos chegado ao fim.

- Amanda, senta aqui no chão comigo, que tal? Ficar de pé é um esforço desnecessário.

Joguei-me no chão com a delicadeza de um saco de batatas.

- Dá pra ver que você não gosta muito de elevadores, hein? Mas te garanto que a gente não morre. Posso te contar uma história?

Ele não esperou qualquer anuência para começar a falar.

-

Quem me dera fobias fossem administráveis. Continuo o relato tendo desejado tê-lo ouvido num boteco, e não num momento de caos mental. As palavras me abraçaram naquele momento, mas afirmo aqui meu desejo de não profanar os mortos. Alec me contou uma história com sua voz calma e seus gestos contidos, e a voz que a ecoa é desajeitada e, pior ainda, traída pela memória.

-

- Eu sou do interior, e minha cidade natal é atravessada por um rio enorme. Meu pai trabalha em um banco faz anos, e o cargo dele fazia com que tivéssemos que nos mudar com certa freqüência. Ele e a minha mãe nunca combinaram de verdade, e por isso eles brigavam demais. Antes que eu pudesse manifestar qualquer vontade, o aquário apareceu. Ao meu redor, aqui e agora, dentro desse elevador parado, você pensa que está ao meu lado, mas de fato há vidro invisível entre nós.

Sou filho único agora, mas já tive um irmão. O aquário surgiu quando ele ainda não era nascido, e depois da morte dele ficou de vez. O acidente foi quando ele tinha seis anos, estávamos brincando na calçada e um carro bêbado passou por cima da gente. Eu sobrevivi. Talvez alguns graus, um novo ângulo para o carro e o pequeno ainda estaria entre nós. A cena acontece de um jeito e permanece pra sempre, sem direito a ensaio ou corte.

Antes de seu nascimento e de sua morte, enfim, meus pais estavam discutindo alguma coisa. Meu pai sempre teve o hábito de empurrar minha mãe até o limite, e ela, ajudada pelos remédios, perdia o controle. Nunca gostei de ouvir as discussões dramáticas, com direito a pratos voadores e copos quebrados. Num dia em que me escondi no meu quarto torcendo para que eles falassem mais baixo e eu pudesse ver desenho animado em paz, surgiu esse aquário ao meu redor. A voz dos dois estava abafada, mas em compensação a televisão nunca pareceu mais viva pra mim. A água era translúcida, o vidro etéreo e tudo que eu precisava fazer era me ajeitar por lá. A partir de então nunca mais consegui prestar atenção nas brigas intermináveis; bastava fechar os olhos, me concentrar um pouco e lá estava meu aquário particular.

Quando um dos dois vinha encher minha paciência com discursos sobre quem estava absolutamente certo e quem estava redondamente enganado, eu podia ficar lá por horas me distraindo com as bolhas e o movimento calmo da água. Meus pais nunca precisaram da opinião de ninguém; um ouvido bastava para que eles despejassem tudo que os engasgava. Gosto de pensar que os ajudei assim, porque enquanto eles se esvaziavam, meu aquário enchia. Para mim, mais água sempre pareceu bom. Talvez ele tenha resolvido se materializar ao meu redor por causa do rio, era para lá que eu fugia quando ainda me importava, e antes de nos mudarmos novamente.

Depois da morte de Tomas, duas coisas aconteceram. A primeira foi exatamente nada, o que me deixou muito perdido. Sempre fui quieto, mas Tomas era uma criança iluminada, todo bochechas gordas e uma risada deliciosa. Meus pais saíam muito de casa pelo ambiente que eles próprios construíam, e Tomas ficava comigo. Tínhamos nossa rotina juntos, esconderijos, palavras secretas. Eu, tão mais velho que ele, admirava sua sabedoria, sua alegria permanente. Quando ele se foi, eu de algum modo sentia que o mundo tinha que parar. Mas os noticiários continuaram indiferentes, o dólar caiu e aumentou e meus pais não conseguiram deixar de implicar um com o outro nem no momento do enterro. Resmungavam algo sobre o caixão enquanto a terra o cobria. Estávamos no interior, não havia rio e a monotonia do mundo me chocava profundamente. Onde estavam os trovões, mares se abrindo, raios cobrindo tudo? Eu precisava de um pandemônio para confirmar que aquela partida significava alguma coisa de importante e crucial, qualquer coisa. Qualquer coisa teria servido, mas foi o nada que prevaleceu.

Na escola as outras crianças tagarelavam sobre assuntos que não faziam sentido pra mim, então eu não tinha vontade de conversar com elas. As notas ruins faziam com que boa parte das professoras me desprezassem, e os adultos legais ficavam para trás a cada nova cidade. O aquário era minha salvação até sua mudança, a segunda coisa de que eu estava falando.

Foi num dia em que meus pais mais uma vez gritavam coisas sem sentido, e eu os ignorava enquanto jogava vídeo game. Só que daquela vez, quando ouvi minha mãe jogando coisas no chão, um calafrio desceu pelas minhas costas e me lembrei da caneca do Tomas. Larguei tudo e, quando cheguei na sala, o dinossauro desenhado na porcelana se espalhava pelo cômodo, partido em mil pedaços em meio a flores e padrões quaisquer, também partidos. Olhei para os dois, perplexo, com um ódio tão grande que, num raro momento, a discussão parou. Eu tremia de raiva, e se houvesse uma arma por perto eu poderia ter dado dois tiros sem maiores remorsos.

Eu gritei que os odiava. Meu pai estufou o peito e minha mãe se jogou no piso de madeira, puxando os próprios fios de cabelo e batendo os pés no chão, fazendo um som infernal. Falei que não era sobre eles, que eles deviam respeitar ao menos um filho perdido, e eles me mandaram voltar para o meu quarto porque eu não entendia, porque eles estavam resolvendo coisas de adultos e eu estava sendo egoísta.

No dia seguinte eu queria conversar com alguém para por os pensamentos em ordem, e pensei na Rosa. Você me lembra um pouco ela, Amanda, a Rosa tinha um cabelo parecido com o seu. Ela era bem quieta, então preferi confiar a ela meu desabafo. Ela me ouviu por alguns minutos, e disse algo sobre eu me afastar dos meus pais e não ligar para eles. Achei o comentário mal formulado, quase jogado como uma esmola mal humorada, mas era o que eu tinha e o que geralmente se ganha ao contar problemas a terceiros. Quando ela abriu a boca para lamentar sobre um vestido perdido, me calei e observei a água do aquário. Ela parecia diferente. Mais turva. Eu olhava para Rosa e tinha dificuldade de enxergá-la, ou de ouvi-la, mas assumia estar acenando a cabeça nas horas certas já que ela não se interrompeu por um único segundo.

Naquela noite, antes de dormir, o aquário escureceu. A água ficou muito pesada, e eu sentia algo entre o sono e o alerta, um meio de caminho que me deixava agitado por dentro e lento por fora. Eu olhava para os meus braços e eles pareciam ter o peso errado, minha cabeça era tragada pelo travesseiro. Pensei em pedir ajuda, mas lembrei que ela nunca viria: meus pais não conseguiriam enxergar nada além deles mesmos.

Foi nesse ponto que eu cometi meu único erro: não esconder o que eu estava sentindo. O aquário, que antes parecia tão amigável, agora me sufocava um pouco. Já fazia tempo que ele não ia embora, mas normalmente eu podia desativá-lo. Depois da morte de Tomas eu não havia tentado novamente; agora, mesmo tentando, não conseguia.

Talvez tenham sido meus movimentos lentos, ou o apetite descontrolado que me engordou muitos quilos; até mesmo o hábito adquirido de dormir imediatamente após qualquer bronca institucional, fosse da faxineira ou do diretor. O fato é que um dia, depois da aula, uma professora me parou e disse que precisava conversar comigo. Disse que percebia que eu estava muito triste e pediu que eu dissesse a ela se havia algo de errado. Decidi contar tudo: sobre Tomas, sobre meus pais e sobre o aquário, esse último causando uma concordância delicadamente cética. Que fique claro, o aquário nunca foi metáfora, ele sempre existiu e sempre vai existir. Após me ouvir compenetradamente, ela decidiu marcar uma reunião com meus pais.

Os dois compareceram para, minutos depois, saírem da sala ofendidos: entre a inconformidade e o sarcasmo, me apanharam no corredor. Pontuavam que ela não sabia nada sobre nós, e enquanto passavam a mão pelo meu cabelo, na porta de saída, diziam que eu era um menino que tinha tudo. Eles nunca haviam deixado faltar nada, insistiam muito nesse ponto: eu tinha os melhores materiais escolares, as melhores roupas e os melhores brinquedos. O diretor com certeza iria ouvir sobre conclusões precipitadas e acusações infundadas, eles repetiam. A Srta. Ângela engolia em seco, olhava para mim com certa aflição. Depois daquele dia toda sexta-feira, quando todas as crianças já haviam saído, ela me segurava pelo ombro e me entregava pães de mel caseiros. Eu agradecia, e nossa conversa se resumia a meia dúzia de frases trocadas nesse momento. Ela às vezes perguntava do aquário, e eu mentia dizendo que ele havia sumido. Foram mais três meses na escola, porque no final do ano eu já estava morando em outro estado.

Meus pais torraram minha paciência depois desse episódio, afirmando quando tinham oportunidade que eu era ingrato. Diziam isso com certa mágoa na voz, e eu precisava lidar com o fato de que eles eram humanos e me amavam do jeito deles. Esse é um fato que sempre serviu mais para aumentar minha culpa do que para perdoá-los, por compreendê-los e continuar me equilibrando entre a raiva e a indiferença.

No próximo lugar, em mais uma situação-limite acabei por desabafar com um garoto parecido comigo, mais calado entre tantas palavras inúteis. Comentei do aquário e afinal descobri que o Igor não era tão quieto assim - até o fim do Ensino Médio fiquei sendo chamado de Peixe.

Mesmo as pessoas bem-intencionadas que me ouviam acabavam mais me descobrindo como um depósito de aflições do que como alguém a ser ajudado. O hábito do silêncio ajuda muito na observação, e às vezes minhas palavras eram úteis. No início eu largava os problemas da minha vida aos soluços – meus pais como o eixo principal – mas os ouvintes sempre eram certeiros em suas respostas simplórias. Enquanto eu escutava pacientemente e relativizava a dor alheia em pedaços, meu relato era um bloco único a ser magicamente resolvido com meia dúzia de palavras e uma rápida retomada aos problemas alheios. Meus relacionamentos unilaterais eram uma forma alternativa de superar a solidão e de me sentir um pouco mais importante. Era fácil - bastava sorrir nas horas certas, ouvir atentamente e lidar com meus problemas sozinho. 

O aquário foi ficando mais complexo com o passar do tempo. Muitas vezes após minhas tarefas, caso me deitasse na cama, o aquário ficava escuro, e eu chorava por horas seguidas, tocando as solas dos pés e dobrando meu corpo para sentir que eu ainda não havia me dissolvido. O tempo escorria ao meu redor e grudava em minha pele; eu não tinha energia para afastá-lo. Uma técnica muito utilizada era me entupir de todas as tarefas possíveis para manter meu corpo funcionando quase automaticamente. Quando eu parava, sabia que o aquário me envolveria como um útero confortável e paralisante. Comecei a trabalhar muito cedo e sempre fui responsável com as obrigações implicadas; guardei o dinheiro rigorosamente com o objetivo de fugir de casa da forma mais pacífica possível – com uma boa desculpa.

Apesar de não ter tanto jeito com as pessoas, eu tinha esperança de, ao largar meus pais, conseguir lidar com humanos de forma mais otimista. Tirar o peso das minhas costas, e quem sabe, me livrar do aquário, já que eu não tinha controle algum sobre ele. Às vezes, entre as pausas cotidianas, eu precisava me refugiar em algum banheiro para reaprender a respirar dentro d’água e seguir com o dia.

A distribuição de sorrisos automáticos nunca acabava, e na verdade era raro o dia em que alguém me perguntava se eu me sentia bem. Mesmo detalhando toda a dor e letargia e escolhendo a dedo um confidente, a decepção era exata. Entregar meu coração em uma bandeja de prata era um exercício que havia se mostrado insustentável e inútil, então optei pelo cotidiano farsesco. Às vezes eu imaginava que, se levasse um tiro no ombro, conseguiria manter um rosto impassível puramente pelo hábito.

As brigas dos meus pais foram ficando menos dramáticas após duas décadas e um tanto, então quando consegui dinheiro para me mudar para a capital, ambos me deixaram ir com o sentimento de que tinham feito tudo certo. E eles de fato fizeram, dentro de suas limitações. Ambos eram cegos e egoístas, e não por isso menos infelizes. Arrastei meu aquário rumo à liberdade.

E foi sozinho que me dei conta: o aquário havia se tornado grande demais. Chegar em casa e deparar-me com a ausência da violência fazia com que a água se esparramasse e inundasse até os eletrodomésticos. Eu nadei pelas ruas, pelo trabalho e pela faculdade, olhando ao meu redor e observando meu próprio corpo como um espectador. Meus movimentos muitas vezes não pareciam sincronizados, como se o tempo e o espaço rodopiassem do aquário e fossem desajeitadamente atirados para fora. O problema de abandonar a zona de guerra é que o estado de alerta se torna parte de você. O ar cheio de tensão, o cansaço pelos pensamentos obsessivos, os sobressaltos com qualquer sombra brusca. O vidro havia engrossado de forma irreversível para que eu alcançasse a compaixão humana, e a água me afogava por vezes.

Ando pensando muito nisso. É verdade - me tornei um peixe, Marcela. E meu destino, único e certo, é terminar em águas. Não num elevador, num poço seco e urbano. Não mesmo.

-

Assim que as últimas palavras dele foram derramadas no chão, a luz voltou e o elevador tomou impulso. Comecei a chorar aliviada, e quando as portas se abriram saí bruscamente. Quando minha alma começou a posicionar-se dentro do meu corpo, olhei para trás e deparei-me com Alec, mais uma vez abandonado por um ouvinte. Tentei pegar o ar para dizer-lhe algo, mas seu aceno cortou qualquer outra chance de comunicação, as portas do elevador o fechando novamente em si mesmo.

-
A dúvida rondava minha cabeça, e eu realmente gostaria de prolongar aquela conversa. Queria compreender de onde havia vindo tanta profundidade dividida com uma completa estranha, mas tinha medo da resposta.

Segunda, terça, quarta, quinta, sexta, segunda. Não o encontrei. Deram falta dele primeiro no trabalho, homem foragido de reuniões importantes. Nas chamadas da faculdade, principalmente nas matérias em que o professor era rígido quanto às faltas, finalmente algumas vozes começaram a perceber que havia algo de errado. Foi o locador de seu apartamento que abriu as portas de um lugar escuro e com água até o tornozelo devido a um vazamento na cozinha.

Foi olhando para meus colegas de sala após o sumiço de Alec que comecei a entendê-lo melhor. Todos comentavam sobre sua simpatia e seus comentários afiados, mas nenhum de nós tinha sequer ideia de sua vida particular. Endereço, possível namorada, mesmo o nome da companhia que ele integrava. Alec participava de tudo como uma espécie de mobília que sabemos que existe, mas sobre a qual nunca nos detemos. Uma espécie de peça-camaleão que se camufla e acaba por lá ficando, beleza perdida pelo véu do cotidiano.

Eu havia comentado com algumas amigas que havia ficado presa no elevador com ele, sem citar maiores detalhes daquela história tão particular e triste. Assim, quando a polícia me convidou a prestar depoimento, aceitei, pensando em quais seriam as palavras certas para não considerarem Alec louco e interromperem as buscas.

Acertei sem querer. Disse a eles que, na breve conversa que tivemos, Alec deu mostras de nostalgia (principalmente em relação a ele mesmo), e logo o delegado me interrompeu perguntando se ele havia falado de casa. Perguntei se já haviam consultado os pais dele, e fui informada de que as investigações estavam sendo conduzidas com sua ajuda.

Minha pausa foi breve. A charada estava ali, sorrindo um sorriso cruel, e eu não queria ser a pessoa a carregar o fardo de ter vislumbrado o futuro e não ter feito nada. O fardo, entretanto, nunca se importou com a minha vontade.

- Sabe, pensando bem, ele disse que estava com saudades.

Dele mesmo. De habitar fora do aquário e de suas ondas furiosas e paralisantes. De ar livre, de vida.

- Mas não bem de casa, sabe. Ele falou bastante da cidade natal. Vocês andaram pelo local?

Não, das tantas residências ninguém se deteve na primeira. Um corpo não identificado havia sido entregue na cidade vizinha e depositado na margem esquerda do rio. Oito dias após o episódio do elevador, Alec finalmente foi reconhecido. Seus pais me agradeceram por ter permitido um enterro ao seu filho, e fiquei imaginando se haveria alguma outra discussão sem sentido no momento em que o caixão fosse coberto pelo coveiro. Algo me dizia que sim.

Mas a tragédia não terminou aí, porque um grupo de rapazes viu Alec se equilibrando em cima de um declive muito alto próximo ao rio e imaginaram o que viria a seguir. Não se preocuparam em impedi-lo, mas tiraram várias fotos do resultado final – um corpo semi-estraçalhado a metros de distância de estranhos desumanos.

Eu estava de pijamas e preparando meu jantar quando tudo começou. Foi o conteúdo das mensagens das pessoas da minha sala de aula que concederam o cenário principal, já que meu celular só carregaria as fotos se eu as selecionasse uma a uma. Eu imaginava Alec e sua preparação, observando as pedras abaixo, pescoço inclinado perigosamente para contemplar as águas. O salto, um corpo projetando-se no ar: último vislumbre de sujeito antes de tornar-se mera carcaça. Meus colegas estavam interessados nos órgãos, exclamações e emoticons fazendo a performance da (suposta) dor humana. e com o estômago embrulhado escolhi uma das imagens para ser entregue em meu celular, me sentindo tão cruel quanto qualquer um deles. Entre curiosos e feridos, parecíamos todos iguais.

Sentada no sofá, apetite assassinado, eu buscava alguma migalha de conforto, qualquer pista de que nem tudo havia dado errado. Meu celular chacoalhava com o debate inflamado sobre a moralidade daquilo, mas eu não queria pensar mais nisso. Com a ponta dos dedos alarguei a foto e me aproximei de seu rosto uma última vez.

Metade de seu rosto estava esmagado contra o chão. O que sobrou de Alec, mesmo comprimido, mesmo desabado pela gravidade, parecia de alguma forma mais leve.